terça-feira, 28 de agosto de 2012

cruzeiro

peço permissão para os deuses para sonhar & a mata estremece

vejo um lagarto
preto & amarelo

 "a poesia é possível
no meio do mato"

encontro o caminho
para a pedra talhada
no Pico do Machadão

cinco sóis se põem. canto de pássaros selvagens. zumbidos agudos das moscas

gavião sobrevoa à distância. toca o guizo cascavel.
eco de mugidos de gado das fazendas circunspectas.

é verão.

o pensamento ultra-
passa a primária consciência

o que existe agora é
o que se mostra aqui

ver a vida além da mágoa
romper as trevas da visão
abrir os olhos. escorpião.

não há receita para que um poema seja escrito
assim como não há um pássaro que ensine outro

a voar.

voe

(...)

existe água no útero da pedra

larvas brancas dançam sob a última luz do dia

tudo o que existe está nú nos teus olhos

cada dia é o melhor de todos: caminhe para enxergar.

se você está livre hoje
você está livre
como um doce rimbaud tropical
se você se sente livre agora
você é

descalço piso sobre está página
sou a personificação da natureza
uma larva que pensa, fala & age

o sol está extremamente azul
minha sombra gira & bate asas

sou
experimento
de mim mesmo

    v
   vo
  voz
 voze
vozes
ozes
zes
es
s

& elas aparecem
nem boas nem más
o corpo arrepia
quente sinto meu
próprio cheiro

o universo não para de dar
cria ao meu redor & contra
a luz microscópicos insetos
flutuam como se houvesse uma
energia elástica entre eles

flores vermelhas, roxas,
amarelas, abóboras,
nuvens indecifráveis.

vida caminhando para a noite,
sombra se fundindo a sombra

um dos pássaros selvagens voa
até o útero da pedra
o pássaro sou eu
eu sou o pássaro

ele canta & bebe a água & gira
o pescoço & voa & pousa sobre um
galho & se alimenta de uma semente
enquanto vejo o brilho de outra

semente

caindo

a pedra é fecunda & se abre sob os meus pés
o que um pássaro precisa para devir pássaro está aqui
o segredo é revelado pelo reflexo do pássaro
na sopa primordial que se formou na vagina da pedra & que depois dos cinco sóis desta tarde infinita dá luz a milhões
de larvas

sensação cíclica
eu sou o pássaro
o pássaro voa
eu voo & vomito
para dizer isso

começa a chover gotas musicais do céu
que evaporam em contato com minha pele
pedra cinza. pedra rajada. pele negra.

quero o gosto das nuvens na boca & ofereço a linguagem aos céus
uma nuvem gigante se aproxima
as cores do céu se modificam:
azul claro, cinza, preto

& começa a chover

ouço os sinos da igreja recortarem o espaço
enquanto extraio um outro tempo do fundo do útero da pedra maciça

(...)

o vento vira a página
há um mundo atrás desta página
um mundo de cores pulsantes & de luzes
que aparecem &
desaparecem sob as nuvens

o pássaro canta o
crepúsculo violeta
até a noite gemer

((((ecos))))

& se materializar selvagem

sinto o sabor da terra úmida
o negrume cai suave sobre
as frutas em decomposição

ouço:

"quando anoitece
com o dia não há
motivo para ter
medo da escuridão"

&

"cuidado apenas
com os espinhos
que podem haver"

pergunto:

"o mundo só tem um nível onde tudo está
ou
existem várias camadas onde cada coisa está?"

escuto:

a natureza contém tudo
gera tudo
absorve tudo
é o princípio
& o fim

é a vida
e a morte

é o verdadeiro poder

& todo poder existente reside
nela & tudo passará por seu
crivo que pode ser um raio
ou a completa recriação
deste universo que
imaginamos possuir
sem sermos nada
mais do que aquilo
que dele somos
capazes de
imaginar

tudo vem depois dela
& todas as respostas
& silêncios
& segredos
estão contidos nas infindáveis manifestações que fazem contato com seu corpo e com sua mente quando absolutamente abertos, expostos até as vísceras a todas as sensações ejaculadas pela natureza

nada mais sensível que o calor & o cheiro milenar desta pedra espaçonave
sexo do universo que me recebe & geme & range os dentes & permite-se
abraçar enquanto oculta todos os demônios do cosmos ...

por fim até o infinito do meu ser finito como é
a música do bando de pássaros migrantes
que atravessa a pequena cidade me leva

com eles

pensamento-estrela
pensamento-arara
dragão
capricórnio

a natureza suga
o meu sangue &
tece a página

:aranha

paraisópolis (mg)
2 janeiro
2010

Um comentário:

  1. Penso que seu poema quase me fez compreender as ideias q ando lendo de um senhor chamado Hans Gumbrecht sobre como a experiência poética pode ser uma tensão entre componentes de sentido e componentes de presença. Embora, tendo, sem querer, rejeitado os elementos de interpretação, li apenas essa sensação vaga e prazerosa, essa sonoridade significante e, nesse caso, luxuriosa - o arrepio poético.

    Sempre bom te reencontrar nessas entrelinhas, apesar de um tanto quanto contrariada, pois não gosto de mesclar autor e obra, e sua presença sempre pesa um pouco nas minhas leituras..rsrs Aí, tenho de lembrar que já és outro e, assim, aprecio só o poema...

    Beijo!

    Maraísa Gabriela.

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